Chama que brinca
Aos dez ou onze anos, na aula de produção de texto, a professora nos desafiou a escrever um haicai. O caderno azul rígido da Tilibra, cor chapada, sem qualquer distração na capa, aquele que meu pai insiste em guardar até hoje; nele registrei com letras infantis a minha primeira tentativa da poesia japonesa:
haicai balão
aqui — BOOM! — minha mão
o céu devolve
Na versão original não usei travessões e sim os famosos três pontinhos. A métrica também está errada, afinal o primeiro verso deve ter 5 sílabas poéticas, o segundo 7 e o último 5. Ou o total precisa somar 17, não? Algo assim? Ahhhh as métricas. Agora entendo a aflição dos meus alunos de Shakespeare quando ensino pentâmetro iâmbico. Hoje se entregasse a tarefa digitada com os travessões é bem possível que a minha professora Marilene, já falecida, suspeitasse que usei o Chat GPT para a construção do poeminha. Ora, mal saberia Marilene que de adolescente a adulto aprendi a usar travessões para tudo, é a piscadela marota a quem me lê.
Veja bem, coincidências não significam nada é claro, às vezes o ceticismo falha. Naquela semana, minha irmã colocou fogo em um dos sofás da casa. Sem propósito, sem diagnóstico, sem razão alguma além do tédio infantil. Um ano antes, um vizinho abobalhado ateou fogo em um lote vago atrás de nossa casa, naquele bairro quase deserto do final dos anos 90. Eu me lembro do cheiro antes de ver as chamas; um cheiro quente de terra seca e plástico derretido. Duas crianças trancadas dentro de casa, vinte minutos até os pais chegarem do trabalho, tempo o suficiente para o fogo atravessar a cerca e devorar as roupas no varal, o pé de manjericão, as tiriricas, o pé de goiaba que sempre dava frutos. Quando a vizinha em pânico ligou para minha mãe, a primeira pergunta dela foi o que minha irmã teria feito.
As mães sempre sabem, e se não sabem, desconfiam e se não desconfiam, é porque já aceitaram o que quer que seja em resignação.
Um ano depois foi o sofá pela menina com o tédio sem rumo. Desta vez não houve vizinho para culpar, apenas uma caixa de Fiat Lux em cima da mesa. Na caixa onde está o meu caderno de capa dura, onde meu pai guarda haicais mal escritos, há uma foto dela sentada no que sobrou do móvel, o tecido carbonizado ainda fumega um pouco, ou talvez seja só a luz da tarde. Ela faz pose, meio sorriso, meio careta, a língua presa entre os dentes como se estivesse segurando uma gargalhada. Há algo de performático, minha irmã sabe que está sendo registrada, sabe que este é o tipo de recordação que vira história:
eu em pautas azuis escrevendo sobre o fogo; ela na realidade segurando o fósforo.
Conheci a obra de David Sedaris durante minha graduação em Letras. Eu falar bonito um dia, De Veludo Cotelê e Jeans e Engolido pelas Labaredas (todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras) são coletâneas de ensaios que originalmente apareceram em revistas como The New Yorker e Esquire. Desde então, acompanho seu trabalho com carinho e devoção.
Chico Felitti, o jornalista e podcaster brasileiro conhecido por seu estilo peculiar e por programas como A Mulher da Casa Abandonada, parece saído diretamente do universo de Sedaris. Sua casa poderia ser um cenário sedarisiano: uma caveira na sala, um guardanapo de qualquer diner americano emoldurado ao lado de uma obra de arte contemporânea, um galgo de cerâmica na penteadeira de perfumes. Cada canto de seu espaço remete àqueles vizinhos excêntricos e fascinantes que Sedaris pinta em seus livros.
A comparação não é aleatória; ambos têm um olhar aguçado para o absurdo cotidiano e uma capacidade única de transformar observações aparentemente simples em narrativas irresistíveis. Sedaris tem um tom mais autobiográfico e satírico, enquanto Felitti mergulha em histórias alheias com curiosidade e alteridade; os dois compartilham o dom de revelar o extraordinário no corriqueiro.
A principal característica de pessoas mortas é que elas parecem mesmo mortas, quase falsas, como manequins de cera. Isso eu aprendi no necrotério municipal que visitei no outono de 1997. (O monstrengo. In: Engolido pelas labaredas)
O trecho acima é do Sedaris, mas se você já ouviu qualquer podcast do Chico Felitti e conhece a sua voz, consegue facilmente imaginá-lo como dono não apenas do fragmento, mas do ensaio inteiro.
É importante ter em mente que David Sedaris é casado com Hugh Hamrick há mais de 30 anos e que sua escrita muitas vezes retrata a dinâmica do relacionamento deles com humor e afeto. Talvez por isso eu tenha me apegado a ele logo no começo dos meus vinte anos, eu queria ser aquele homem gay, parte daquele casal estável e cheio de personalidade que ele descreve com tanta sagacidade em seus ensaios - se você leu a minha newsletter sobre a Joan Didion, vai perceber que ela e John Gregory Dunne são outro casal que moldaram a minha visão de relacionamentos ideais que são possíveis.
Se eu fosse criança e visse uma coisa saindo de um buraco na perna da minha mãe, procuraria o orfanato mais próximo e me ofereceria para adoção.
Este trecho resume bem a atmosfera de Engolido pelas labaredas, e funciona como uma excelente amostra do que o leitor encontrará na obra, revelando a mente inquieta e paradoxal de Sedaris. O autor transita entre o cômico absurdamente paranóico, como o seu medo irracional de ser enterrado vivo, e o afetuosamente torto; sua relação com Hugh é um dos eixos centrais de sua obra. Desde os primeiros encontros descritos em Eu falar bonito um dia até as dinâmicas cotidianas da terceira idade em Happy-Go-Lucky, Sedaris transforma o ordinário com seu olhar aguçado e autodepreciativo. Sedaris usa o humor como ferramenta de contenção emocional, suas histórias revelam vulnerabilidades universais; o medo da morte explorado de forma hilária e comovente em Calypso, a dependência afetiva de Hugh, a relação complexa com o pai autoritário, e a franqueza sobre ter uma irmã favorita.
Embora o autor construa uma persona literária de misantropo tímido, ele é reconhecido por performances cativantes em turnês, um paradoxo que o Guardian destacou como parte de seu charme. Sua escrita, marcada pela combinação de sagacidade e melancolia, ressoa justamente por expor contradições humanas. Sedaris transforma experiências pessoais em espelhos para o leitor, seja na descrição de fobias triviais ou no amor desajeitado pela família, o escritor cria uma cumplicidade íntima através da honestidade brutal e do ritmo impecável.
Nossa água foi cortada pela última vez no início do verão. Levantei no meu horário normal e percebi que Hugh estava fora em algum lugar, fazendo não sei o que. Então eu tinha que resolver o problema do café sozinho - uma espécie de ardil-22, pois eu preciso de cafeína para pensar direito. Uma vez, ainda meio zonzo de sono, fiz café com Perrier, o que soa plausível, mas na verdade não é. Em outra ocasião, esquentei um resto de chá e despejei o pó do café. Poderia ter dado certo se fosse chá preto e não verde, no entanto do jeito que foi, o resultado foi horrendo. Este é o tipo de coisa que só se faz uma vez, então eu passei pela chaleira e fui direto ao vaso de flores silvestres ao lado do telefone, numa das mesas da sala de visita. (Toda a beleza que você vai precisar, In: Engolido pelas labaredas)
Vocês já acompanharam o dia-a-dia do Chico Felitti? Nos stories do Instagram? To-tal-men-te David Sedaris.
Cinzas no silêncio
Chico Felitti produziu uma das melhores reportagens do jornalismo brasileiro recente, que mais tarde se transformou no livro Ricardo e Vânia (2019), pela Todavia. A obra, oriunda de sua reportagem para o falecido Buzzfeed em 2017, é um marco em sua carreira e um ótimo exemplo de jornalismo literário sensível, aprofundado que não é nada apelativo.
Com uma narrativa que equilibra rigor factual e empatia, Felitti constrói uma história ao mesmo tempo dolorosa e poética sobre homens que estão à margem da sociedade e também à margem da masculinidade. O que torna o texto de Felitti singular é justamente sua capacidade de enxergar as pessoas em sua complexidade. Ele não apenas reproduz histórias, ele as vive junto aos personagens, com uma curiosidade genuína de menino de dez anos que está vendo um adulto pela primeira vez, e esse traço genuíno transparece em cada linha. Seu interesse pelas nuances humanas é o que confere à sua escrita um tom ao mesmo preciso, comovente e reconfortante.
'Salut, Alê! Ouvi falar dessa matéria. Estou aqui almoçando, numa correria. Cansadíssima!'. Desconfio que seja Babette, que morou com Ricardo quando ainda era conhecida por Vagner. Pergunto para Alexandra: 'É o Vagner?'. Ela diz que sim. 'O Vagner hoje é Vânia.' Vânia Munhoz, que por oito anos namorou Ricardo, quando ainda se chamava Vagner, existe. Está viva e em Paris. E ainda não leu a matéria. 'Vou dar uma olhada assim que tiver um tempinho', ela promete na mensagem de áudio transmitida por Alexandra. Dois dias depois, Vânia me adiciona no Facebook. (Ricardo e Vânia, Todavia, 2019).
Por mais que adore ouvir as histórias que Chico compartilha em seus podcasts, desejo que ele escreva e publique mais. Seu jornalismo tem uma qualidade única que mereceria ser explorada textualmente com mais frequência.
O fogo lambe a madeira
Foi aos vinte anos que descobri o Bálsamo do Tigre, mencionado em um dos contos de David Sedaris; uma daquelas pequenas ironias da vida, um detalhe aparentemente insignificante que, por razões obscuras, se aloja na memória. No ensaio, uma vizinha idosa, despida no banheiro, pede que ele a ajude a untar suas pernas doloridas com o unguento. A imagem grotesca e íntima, uma daquelas cenas que uma vez lidas, impregnam como fumaça.
Naquela época, não havia Mercado Livre, Amazon.br ou a facilidade do clique que hoje transforma todo desejo em possibilidade imediata; as coisas ainda exigiam esforço, demandavam uma certa fé. Lembro-me de uma viagem de temporada a São Paulo com um namorado, foi na Liberdade entre lojas de incensos e afins, que procurei pelo tal bálsamo. Havia algo quase ritualístico na busca, como se eu estivesse à procura não apenas de um remédio, mas de um talismã.
Comprei três latinhas minúsculas, alaranjadas, que cabiam na palma da minha mão. A pomada era mais suave que o Vick Vaporub, menos agressiva, igualmente penetrante. Usava-a no pescoço depois de horas curvado sobre livros, os músculos tensos como cordas de violino afinadas demais. Passava nas pernas daquele namorado depois dos jogos de futebol, os dedos pressionando contra seus músculos rígidos, o calor do bálsamo se infiltrando sob a pele. Ele reclamava do cheiro, logo depois adormecia, e eu ficava ali, observando como a respiração dele se aprofundava, como se o unguento tivesse algum poder hipnótico.
O aroma nunca me deixou; canforado, mentolado, um fantasma que insiste em pairar na ponta do meu nariz mesmo anos depois. Era suave a princípio, quase discreto; depois de um tempo, grudava em tudo, nas roupas, nos lençóis, no ar. E se você usasse demais, queimava, não uma queimadura violenta, não; uma ardência persistente, como um lembrete de que alívio e dor muitas vezes são indissociáveis. Hoje, quando vejo uma daquelas latinhas vejo um pequeno frasco de alívio e nostalgia, um cheiro que arde como a maioria das minhas memórias.
Caso você não tenha percebido, os subtítulos que abrem cada uma das três seções da newsletter de hoje formam o haicai abaixo. Um haicai mequetrefe que ignora métrica, e que constrói uma gracinha. Sempre escrevo um haicaizinho em cartões de aniversário aos que amo!
Chama que brinca
- cinzas em silêncio,
o fogo lambe a madeira.
Tiger balm em mim cheira saudade do meu pai.
Adorei o texto e as referências. Gosto do podcast do Chico. Ah e me lembrou de um episódio da minha infância no qual meu irmão tacou fogo no sofá. Eu escrevi sobre isso:https://www.instagram.com/p/C4TAVL2LbsF/?igsh=bjB4aDQybzdzdGx1