Foi estudando Jane Austen e os oitocentos (2008-2013) que aprendi a ler literatura com o olhar de um economista. O homem burguês que conhecemos hoje e que é o objeto de afeto da Marilena Chauí nasceu neste século, marcado por profundas mudanças nas estruturas sociais que ecoam (por vezes com mau cheiro) até hoje.
O mundo do trabalho como o conhecemos, com suas profissões rigidamente organizadas e hierarquicamente segregadas de acordo com prestígio social, a precificação de bens e serviços, a divisão técnica das funções, e toda a estrutura produtiva que sustenta o capitalismo moderno, consolidou-se ao longo do século XIX e atingiu seu ápice no século XX. Esse modelo, no entanto, é resultado de um processo histórico de longa duração, cujas raízes remontam a transformações muito anteriores.
Em O Longo Século XX (1994), o historiador econômico Giovanni Arrighi oferece uma análise seminal sobre a evolução do sistema capitalista, argumentando que a estrutura econômica do século XX e, por extensão, a do século XXI, não pode ser compreendida sem examinar os ciclos sistêmicos de acumulação que começaram ainda no século XV. Arrighi demonstra como a ascensão de Veneza como potência mercantil, seguida pela hegemonia holandesa, britânica e, finalmente, estadunidense, constitui uma sequência de séculos longos, que não necessariamente duram os cem anos do calendário, nos quais cada ciclo de acumulação redefine as relações entre trabalho, capital e poder global.
A obra ilumina como práticas aparentemente modernas, como a financeirização da economia ou a segmentação desigual das profissões, têm origens nos arranjos mercantis do Mediterrâneo renascentista. Veneza, com seu sistema de commenda (parcerias comerciais precursoras do capital financeiro), e depois as corporações holandesas e inglesas, estabeleceram os pilares de um sistema que, séculos depois, culminaria na industrialização fordista e na atual economia neoliberal. O século XX longo de Arrighi, portanto, é um paradigma de acumulação que se desloca geográfica e temporalmente, deixando marcas profundas na organização do trabalho e na valoração social das ocupações.
O estado como obra de arte
Em O estado como obra de arte (1860), parte integrante de sua obra magna A Cultura do Renascimento na Itália, o historiador suíço Jacob Burckhardt (1818–1897) propõe uma análise, inovadora para os oitocentos, sobre o surgimento do Estado moderno no contexto das cidades-estado italianas do século XV. O autor argumenta que em meio ao colapso da ordem feudal e à fragmentação política da península itálica, figuras como os signori (senhores tirânicos de Florença, Milão e Ferrara) e as repúblicas mercantis como Veneza desenvolveram um novo modelo de poder; um sistema calculista e racionalizado, que antecipou as estruturas políticas da modernidade.
Segundo Burckhardt, os governantes renascentistas livres dos constrangimentos morais medievais, trataram o poder político como uma obra de arte, moldada pela virtù (habilidade estratégica) e pelo pragmatismo, não por princípios éticos ou religiosos.
Essas cidades italianas eram cenografias do poder. Lorenzo de’ Medici reformou Florença com praças monumentais, como a Piazza della Signoria, e palácios, como o Palazzo Pitti), transformando a urbe em um palco de sua autoridade. A Cúpula de Brunelleschi (1436) não era apenas uma obra de engenharia, mas um símbolo do orgulho cívico florentino, uma manifestação artística estatal em concreto. Michelangelo e Donatello trabalharam sob encomenda de mecenas políticos, esculpindo heróis clássicos que metaforizavam a virtù dos governantes.
Na esfera literária, o período também foi marcado por obras que serviam como instrumento de propaganda e crítica política, muitas vezes financiadas pelas cortes. Maquiavel, em A Mandrágora (1518), satiriza a corrupção clerical, mas também reflete o jogo de aparências que descreve em O Príncipe (1532). Petrarca e Poliziano dedicavam odes a nobres, valendo-se da mitologia clássica para glorificar seus patronos, como nas Estâncias deste último, que celebram Giuliano de’ Medici como um novo Apolo.
À medida que a riqueza começou a circular e a concentração de poder econômico se deslocou, homens que antes estavam à margem das elites europeias passaram a ter voz ativa na política. Essa transformação social abriu caminho para um novo ordenamento, um processo turbulento, marcado por revoluções e guerras que reconfiguraram as estruturas de poder. Os frutos dessas mudanças, conquistados muitas vezes a duras penas, ainda hoje influenciam nossas sociedades, seja em avanços civilizatórios ou nas contradições que persistem.
No entanto, enquanto países centrais debatem políticas redistributivas mais justas, o Brasil ainda discute se as elites devem ou não pagar impostos proporcionais à sua renda, em contraste com a pesada carga tributária que recai sobre as classes trabalhadoras. Essa dissonância revela uma verdade incômoda, o Estado, mesmo sob governos nominalmente progressistas, raramente está verdadeiramente alinhado com os interesses do chão de fábrica. O Congresso e o Senado, cada vez mais distantes das demandas populares, consolidam-se como pilares do status quo, reproduzindo desigualdades em vez de combatê-las - desde o século XV, veja bem.
Nesse contexto, a literatura e a arte emergem como termômetros sociais poderosos, capazes de capturar os conflitos de classe e as contradições de sua época. Trago hoje dois exemplos ilustram bem essa dinâmica, cada um no seu tempo e país. Vejamos!
Orgulho de ser trabalhador e preconceito com bilionário
Quando falamos do século XIX estamos nos referindo à Europa como centro cultural e modelo para a literatura que conhecemos, lemos e escrevemos até hoje. Isso é especialmente verdade quando tratamos do romance, um gênero que além de ser essencialmente europeu, é antes de tudo profundamente inglês em sua origem e consolidação.
A ascensão do romance – como já mencionei na newsletter #11 – acompanhou em tempo real a ascensão da burguesia e das classes médias emergentes. Foi um período de transformação social marcado pela ascensão do homem sem propriedade ou herança, que enriqueceu, dentre outros adventos, com as Guerras Napoleônicas (1803-1815), e pelo declínio gradual da aristocracia rural inglesa, a chamada landed gentry. É fascinante observar como um movimento artístico refletiu com tanta precisão a mobilidade social da época, capturando tanto a emergência de novas classes quanto o ocaso de outras. Na história da literatura, dificilmente encontraremos outro momento em que condições históricas tenham sido tão propícias para o surgimento de uma forma de expressão artística que perdura até os dias atuais – inclusive no momento em que esta newsletter é publicada.
No período em que Jane Austen escreveu, entre 1790 e 1810, as mulheres enfrentavam enormes barreiras para publicar suas obras. Além disso, o romance era considerado uma forma de arte inferior, justamente por não retratar as classes dominantes tradicionais e por ser destinado ao público feminino. Naquela época, a burguesia ascendente – hoje equivalente à classe média alta, começava a desafiar o monopólio cultural da aristocracia. Compreender a complexa divisão de classes na Inglaterra do período é de fato desafiador, e não me aprofundarei aqui, mas recomendo a leitura de autores como Raymond Williams em The Country and the City e Eric Hobsbawm em A Era das Revoluções, que exploram brilhantemente esse tema. (Em meu texto destinado ao público falante de português, uso classe social, mas a nomenclatura correta é rank, que pode ser traduzida como casta, um sistema vigente até os dias de hoje na sociedade Inglesa).
As elites dominantes ainda valorizavam autores como Alexander Pope e Samuel Johnson, e a poesia clássica mantinha seu prestígio. Na transição entre os séculos XVIII e XIX, os cânones literários ainda eram definidos por figuras como esses, cujas obras eram consideradas modelos de erudição e refinamento.
Foi nesse contexto de ambiguidade cultural que Jane Austen subverteu o romance, um gênero que até então era frequentemente utilizado para doutrinar jovens mulheres, como em Pamela (1740), de Samuel Richardson, um exemplo paradigmático de literatura condutora/didática. Austen, porém, empregou o invólucro do amor e do casamento como estratégia de contenção narrativa para criticar os costumes das classes altas e, sobretudo, as leis de herança que oprimiam as mulheres. Em vez de meramente instruir moças para o casamento, como faziam os romances didáticos da época, suas obras expunham as contradições de um sistema que deixava as mulheres à míngua, sem direitos patrimoniais ou autonomia. Sua ironia fina e sua perspicácia social transformaram o romance em um instrumento de crítica sutil e incisiva, à sociedade de seu tempo.
Embora Orgulho e Preconceito (1813) seja o romance mais famoso de Jane Austen, obras como Emma (1815), Razão e Sensibilidade (1811) e, sobretudo, Persuasão (1817) oferecem uma análise ainda mais minuciosa da economia inglesa no período pós-guerras napoleônicas. Dentre esses, Persuasão — seu único romance póstumo e, não por acaso, meu favorito! — destaca-se como a obra mais matizada em sua crítica social e econômica. No romance, Austen explora as tensões entre a antiga aristocracia rural (representada pela decadente família Elliot) e a nova elite naval (encarnada no almirante Croft e no capitão Wentworth), cuja ascensão foi diretamente impulsionada pelas guerras e pelo expansionismo britânico. A própria protagonista, Anne Elliot, vive na pele as consequências de um sistema que desvaloriza as mulheres: após ser convencida a rejeitar Wentworth por motivos financeiros (já que ele, à época, não tinha fortuna), ela assiste, sete anos depois, à inversão de seus lugares sociais — ele, agora rico e bem-sucedido; ela, solteira com 25-27 anos e à mercê da caridade alheia.
Ao contrastar a decadência dos Elliot com a vitalidade dos oficiais da marinha, ela não apenas critica o parasitismo da velha aristocracia, como também celebra (de forma pioneira!) a mobilidade social trazida pelo mérito. Não é à toa que este seja seu romance mais melancólico e, ao mesmo tempo, o mais esperançoso.
Angústia
Escrito e publicado em 1936, no ápice do Estado Novo e em meio à crise econômica global pós-1929, Angústia, de Graciliano Ramos, é um romance que poderia ter sido escrito hoje ou quiçá daqui a 30 anos, ou enquanto operarmos sob o capitalismo que conhecemos. À beira do que hoje chamamos de esgotamento laboral, mas a internet ama chamar de burnout como se não houvesse tradução em português para o termo, o protagonista Luís da Silva narra, em fluxo de consciência cortante, as mazelas de vender seu trabalho intelectual em troca de uma sobrevivência mínima. Aos 35 anos, ele é um homem seco, distante dos louros esperados para um homem de sua idade em uma sociedade que mede o valor humano pela produtividade: seu emprego burocrático é precário, sua casa é precária, seu relacionamento amoroso é precário. 1936, 2006, 2016 ou 2026? Alguém?
O Brasil dos anos 1930 vivia sob a asfixia de uma industrialização incipiente e de um regime autoritário que instrumentalizava o trabalho em nome do progresso. Graciliano, ele mesmo preso político em 1936, retrata essa engrenagem perversa, quem domina os meios de produção — seja o jornal estatal, a fábrica de cabos elétricos ou as ruas onde trabalham as profissionais do sexo, pouco se importa com os corpos e mentes consumidos por ela. Em Angústia, até os sentimentos do burocrata são reificados, transformados em objetos de troca, como se somente na condição de coisas pudessem ser assimilados por um mundo que os rejeita em sua humanidade.
E aqui ecoa uma verdade que a companheira Mariah Carey em sua sabedoria pop, nos legou: somos socializados para acreditar que o fracasso financeiro é uma falha moral individual, e não o colapso estrutural de sistemas que exploram até a exaustão. Luís da Silva internaliza essa culpa, mas sua narrativa desnuda a mentira, assim como hoje fazem os discursos sobre resiliência, wellness e autocuidado em meio a salários aviltantes e jornadas desumanas. O sujeito-personagem é fragmentado, e a narrativa acompanha a fragmentação, em sua não-linearidade.
Graciliano com sua prosa seca mas sem concessões, não apenas antecipou a discussão contemporânea sobre saúde mental e trabalho, como expôs a violência de um capitalismo que, em qualquer época, trata vidas e afetos como recursos descartáveis.
E o que fica?
Tanto Jane Austen, em Persuasão, quanto Graciliano Ramos, em Angústia, utilizam o romance como um espaço de contestação às estruturas de poder, questionando o Estado e o discurso dominante de maneira sutil, porém incisiva. Em Persuasão, Austen expõe as hierarquias rígidas da aristocracia britânica e a marginalização econômica das mulheres, revelando como a sociedade patriarcal e classista condena personagens como Anne Elliot ao silêncio e à resignação—até que uma revisão crítica do passado permita uma resistência discreta, porém significativa. Já em Angústia, Ramos mergulha na psique de um homem corroído pela opressão social e pela culpa, desvendando as contradições de um sistema que produz alienação e violência. A narrativa fragmentada e introspectiva do romance desmonta a ideia de uma ordem social justa, mostrando como o Estado e as relações de classe deformam o indivíduo.
Celebrar obras, ou atores/as, que glorificam regimes totalitários ou economias exploradoras é um risco, a arte nunca é inocente: ela ou reforça a dominação ou a desafia. A consciência de classe pode estar presente mesmo onde não é nomeada diretamente—nas escolhas narrativas, nas vozes silenciadas, nas tensões não resolvidas, até, pasmem, na editora escolhida para a publicação de uma obra. Tanto Persuasão quanto Angústia, cada um à sua maneira, revelam que a literatura é um fragmento político e artístico inseparável, um campo onde a estética e a crítica social se fundem mais uma vez no tão falado por mim em outras edições, conteúdo da forma.
Ler esses romances apenas como obras de grande estilo ou como meros retratos de época é ignorar sua potência subversiva. Austen e Ramos demonstram que o romance pode ser um instrumento de desestabilização ideológica, expondo as falhas do sistema e abrindo espaço para questionamentos. A tarefa do leitor crítico é desvendar essas camadas, recusando leituras apolíticas que neutralizam o potencial transformador da literatura. A arte não pode ser apenas um refúgio da realidade, é uma arma de confronto; em tempos em que as grandes fortunas estão acabando com os recursos vitais essenciais, é hora de organizar direitinho uma revolução, mesmo que com papel, palavras afiadas e textos afrontosos.
Em tempo: A abordagem do texto na newsletter de hoje é mais ou menos o tom do curso de Leitura Crítica que ministro agora em Julho.
As inscrições estão abertas. O curso tem início dia 28 de julho e terá vagas limitadas. Por ser um curso de caráter experimental, terá valor reduzido. Os quatro encontros custam R$281,60 com pagamento via PIX até o dia 28/07, início das aulas. Mais informações no Formulário Google abaixo.
Turma A. Segunda-feira, das 19h00-20h30 (temos apenas 4 vagas).
Turma B. Segunda-feira, das 20h30-22h00 (temos vagas).