Muito me encanta a expressão festa do caqui, que de fato funciona como sinônimo para casa da mãe Joana que também pode ser substituída por oba-oba em alguns contextos, embora a última tenha uma conotação mais positiva de festa desorganizada.
Falando em caqui, confesso minha paixão por essa fruta, embora raramente a consuma. Minha dificuldade está no ponto ideal; ou dura demais, quando ainda está verde e adstringente, cheia de taninos que apertam a boca, ou mole demais, transformando-se em uma pasta doce que se desmancha em dois dias na fruteira. O segredo é comprá-la quando está firme, com a casca alaranjada brilhante, e deixá-la amadurecer em temperatura ambiente — se é que tal coisa existe em tempos de ebulição global no trópicos.
Em inglês, persimmon soa quase como um sobrenome aristocrático. E, de fato, esse sobrenome existe! Uma pesquisa no registro de nomes dos EUA confirma que Persimmon é um sobrenome incomum, mas presente, especialmente em Massachusetts, estado com forte tradição de imigração e com uma história curiosa de adoção de sobrenomes baseados na natureza.
O caqui, Diospyros kaki — tive um namorado grego em 2018 que me ensinou a entonação de algumas palavras, essa daí uma elas, tem uma história fascinante. Originário da China, foi levado para o Japão onde se tornou fruta nacional e o nome Diospyros significa fruto dos deuses em grego — um belo contraste com a humilde festa do caqui do nosso português coloquial.
Na barraquinha da exportação cultural, além da escrita criativa, Labubu, Bobbie Goods e da interferência política em países vulneráveis, é dos Estados Unidos que recebemos o gênero de autoajuda aliado ao discurso empreendedorista que assola o Brasil em ritmo de festa do caqui desde os 2000.
Livros como A Cabana (2007), O Segredo (2006), O Monge e o Executivo (1998) e até o clássico A Arte da Guerra — século V a.C., mas popularizado no mundo corporativo nas últimas décadas, eram frequentemente citados por executivos respeitados, como Luiza Helena Trajano do Magazine Luiza, como leituras inspiradoras para o empreendedorismo.
No entanto, hoje, até motoristas de aplicativo compraram a ideia de que são empreendedores de si mesmos. Embora os livros mencionados não sejam de difícil compreensão para mim ou para você, leitor desta newsletter, é preciso um mínimo de elitismo e malícia — sem recorrer a retórica da falecida Danuza Leão, tudo tem limite — para reconhecer uma verdade inconveniente: falar de Deus em uma linguagem literal é muito mais acessível ao grande público do que decodificar metáforas e analogias como as de A Cabana ou O Segredo — porque antes, o empreendedor era o executivo clichê que temos em nosso imaginário coletivo, hoje, é em sua maioria o homem comum em trabalhos precarizados que acredita ser CEO de seu carro financiado.
Embora aparentemente inofensivos, nenhum livro é isento de ideologia — e confesso ter certa nostalgia de quando os livros de autoajuda nas bancas eram mais focados em bem-estar, com pitadas de filosofia e psicologia diluídas em doses homeopáticas. Nesse cenário, o nome que mais me vem à cabeça é Içami Tiba, talvez o último expoente de uma autoajuda branda, que observei no início da minha adolescência, no fim dos anos 1990, quando comecei a acompanhar a lista de mais vendidos da Veja.
O empreendedorismo religioso não cresceu por acaso no Brasil pós-2016. Sua ascensão coincide com o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff e colocou Michel Temer no poder, inaugurando uma era próxima de um Estado mínimo — aprofundada depois pelo governo seguinte, daquele cadáver político com hálito de tártaro e aura de mictório, e foi nesse cenário que motorista de aplicativo virou empreendedor, engenheiro de software virou motorista, e ninguém mais “quis" estudar para virar engenheiro. Criou-se, assim, o terreno perfeito para ideias tóxicas se infiltrarem numa população descontente com o Estado e a economia.
A retórica da autoajuda se tornou mais agressiva, mais hipnótica, mais visceral. Se nos anos 1990 e início dos 2000 o gênero ainda buscava na filosofia e na psicologia ferramentas para iluminar relações humanas — entre pais e filhos, entre amantes, entre indivíduo e sociedade, nos 2020, revestida de linguajar neopentecostal, ela opera uma fusão perversa: falar de Deus e do propósito divino agora significa falar do seu lugar na cadeia produtiva.
Ler qualquer coisa é melhor que não ler?
A resposta que surge imediatamente em mim é não. Se eu parar para considerar com mais calma, ainda assim direi não. E quando reviso minha experiência de duas décadas como professor, crítico e leitor dedicado, a conclusão se mantém inalterada: não. A leitura por si só não é uma virtude automática. Alguns livros não apenas deixam de iluminar como podem obstruir ainda mais o caminho.
Café com Deus Pai, do pastor Júnior Rostirola já vendeu mais de um milhão de exemplares, e promete soluções práticas para a vida cotidiana, temperadas com mensagens como Você é destinado à abundância e Deus já preparou seu milagre. Seu sucesso não é acidental, ele fala diretamente a um Brasil profundamente religioso — 87% da população se declara vinculada a alguma fé, de acordo com o Datafolha, e a uma classe média baixa que sonha com ascensão social em um sistema que raramente oferece mobilidade real. O problema está na forma como esse tipo de obra transforma a fé em um manual de autoajuda simplista. Quando Rostirola escreve que a prosperidade é uma questão de destino divino, ele apaga as complexidades econômicas e sociais que mantêm milhões de pessoas em situação precária. A mensagem de que basta crer para vencer ignora que o jogo está viciado desde o início.
A classe C, que representa aproximadamente 62 milhões de brasileiros, é a que mais consome literatura religiosa e de autoajuda, muitas vezes em busca de respostas que a escola e o Estado não forneceram. Quando o sistema falha em explicar as razões da desigualdade, sobra a promessa de um milagre; criticar essa literatura não se trata de desprezar a fé ou menosprezar a busca por conforto espiritual, o risco está em obras que vendem ilusões como soluções, que substituem a reflexão por fórmulas prontas e que, no fim, ensinam o leitor a aceitar sua condição em vez de compreendê-la.
Você pode substituir o caqui por tomate
Minha mãe, professora universitária recém-aposentada e divorciada, caiu nas garras de um grupo de senhoras aparentemente inofensivas — mulheres de sua idade (61), mas décadas mais velhas em espírito, do tipo que transformam livros ruins em vício coletivo. Não eram obras qualquer: era aquela literatura de autoajuda disfarçada de piedade, cheia de fórmulas milagrosas e frases de efeito que empobrecem a alma, que meu pai chama de simplicidade nociva. Quando descobri, reagi como qualquer filho amoroso e completamente irracional, briguei, quase chorei de desgosto. Cheguei a pensar que preferiria vê-la viciada em crack, pelo menos a decadência seria honesta.
Comecei a enviar-lhe livros pelos correios, cuidadosamente selecionados e nos últimos meses, ela leu Oração para Desaparecer e Cabeça de Santo, ambos de Socorro Acioli, narrativas tão mágicas e bem escritas que sem perceber, ela foi fisgada por algo muito maior que lições morais simplórias; A Elegância do Ouriço de Muriel Barbery — filosofia disfarçada de romance, para quem precisa lembrar que a profundidade existe, e Torto Arado do Itamar Vieira Junior — sim, eu sei, eu sei… podem me chamar de falsa, mas antes Itamar do que Padre Marcelo, por favor.
Se você perceber que alguém próximo está mergulhado em livros de autoajuda rasteira ou literatura religiosa de má qualidade, resista à tentação de atacar o gosto alheio. A verdadeira sabedoria se impõe pela sutileza e confrontar só gera resistência. Se a pessoa está lendo algo como Pare de Sofrer e Comece a Vencer com Fé, não adianta dizer que o livro é fraco, afinal se tem uma coisa que é forte é a fé, eu concordando ou não. Em vez disso, coloque na estante algo como Vidas Secas, de Graciliano Ramos. À primeira vista, pode parecer apenas um romance regionalista, mas quem lê descobre ali uma reflexão profunda sobre a dignidade humana, a luta contra o destino e a força dos laços familiares.
Se o autor favorito dela diz pense positivo e tudo dará certo, mas a vida real teima em contradição, mostre como a literatura de verdade lida com adversidade. Leia um trecho de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa:
O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
Isso tem muito mais força do que qualquer promessa vazia de felicidade instantânea e embora seja um uso instrumental da literatura, esse tipo de exorcismo é mais que bem-vindo. O segredo — perdão pela piada, não é destruir o que a pessoa gosta, e sim apresentar algo tão atraente que ela mesma vá migrando naturalmente. Quando possível, se inspire na riqueza da nossa própria literatura — porque o Brasil tem mestres capazes de falar direto à alma, sem precisar de fórmulas fáceis ou artifícios religiosos.
tive um flashback ao ler as palavras içami tiba … meus pais amavam 🫠
O texto é bem escrito e traz observações importantes sobre o avanço do discurso religioso-empreendedor como forma de dominação simbólica. Mas me incomodou um tom levemente classista, especialmente ao tratar com ironia o gosto literário de certos públicos. É claro que, na sociedade e no regime em que vivemos, o capitalismo molda o que lemos, consumimos e temos acesso. Mas criticar a autoajuda religiosa sem considerar as desigualdades materiais e educacionais pode acabar reforçando o mesmo elitismo que o texto pretende combater.