Talvez tudo tenha começado quando li A Morte de Ivan Ilitch, novela que seria o objeto de análise do meu doutorado, um projeto que, por razões diversas, não cheguei a concluir. Essa novela de Tolstói permanece até hoje como uma das minhas obras prediletas, embora eu tenha certa resistência à ideia de favoritos. Afinal, eleger preferências me parece um gesto mais adequado a um menino de dez anos, que, ao descobrir o mundo, precisa catalogar seus objetos e afetos prediletos para, a partir deles, construir uma identidade e encontrar tribos que compartilhem dos mesmos gostos. E eu já sou, digamos, semi-novo.
A Morte de Ivan Ilitch, no entanto, transcende qualquer noção simplista de preferência. Tolstói constrói uma narrativa que gira em torno da problemática da reificação, a redução da vida a objetos, status e relações utilitárias. A obra expõe o possessivo como sintoma de uma sociedade que, embora progredisse materialmente e permitisse a ascensão de novas classes, falhava em oferecer as ferramentas necessárias para uma elevação cultural e, sobretudo, espiritual. E aqui, é essencial sublinhar: estamos falando de Tolstói, um autor para quem a busca pelo sentido da vida e a transcendência do mundano eram questões centrais.
A agonia de Ivan não é apenas física, mas existencial. Ele morre sozinho, cercado de convenções sociais vazias e da falsa consolação de uma vida supostamente bem-sucedida. A novela é um mergulho profundo na condição humana, uma crítica contundente à superficialidade burguesa e um convite à reflexão sobre o que, de fato, importa. Por isso, mais do que uma obra favorita, A Morte de Ivan Ilitch é um daqueles livros que nos perseguem, exigindo releituras e reinterpretações ao longo da vida.
O personagem em seu leito de morte tem como único objeto de afeto a sua doença. Mentira. Na verdade, é a morte iminente que ocupa esse lugar de desejo. Não, ainda não é isso. Há também o amor do cuidador, digno de nota, mas não objetificado, pois este só existe na forma pura do cuidado, sem outro interesse pelo enfermo.
A narrativa é minuciosa, excessivamente descritiva: móveis adquiridos, tecidos, vestidos, dinheiro, serviços, custos com empregados; tudo esmiuçado até o último centavo. Ivan observa, incrédulo, aquela ópera burguesa de consumo que invade seu lar enquanto ele, pouco a pouco, definha. Sua carne, que ironicamente será descartada em breve, se torna apenas mais um objeto na coleção daquela família obcecada por possuir.
É uma novela brutal, e raramente forma e conteúdo se entrelaçam de modo tão sublime; temos aqui, como manteiga no pão quente, o famoso conteúdo da forma. Para quem se interessa pelo tema da reificação, São Bernardo, de Graciliano Ramos, é minha segunda recomendação grandiosa na temática.
Mas voltando.
Eu realmente não gosto de ter. Acho ter demais cafona. Sempre achei, mas agora que estou ficando mais velho e sou ativo em redes sociais, acho mais ainda. Há uma certa vulgaridade na demonstração do acúmulo, uma espécie de desespero mudo na maneira como as coisas se amontoam em armários, gavetas, prateleiras, como se a quantidade pudesse preencher algum vazio. Me dá agonia ver os projetos da Doma Arquitetura, projetos centrados em fazer armários para guardar coisas, uma arquitetura gulosa pelo acúmulo.
Enquanto lavava os cabelos mais cedo, comecei a correr mentalmente uma lista das coisas que tenho e das coisas que não tenho porque doei, joguei fora ou vendi; um exercício menos de contabilidade, mais de confissão. Hoje tenho aproximadamente quinze peças de roupa. Entre camisas, camisetas, casacos, calças, shorts. Meias e cuecas, sim, essas eu tenho em boa quantidade; mas não pense você que estou desarrumado por isso. Não. Estou sempre alinhado, bem vestido, como se a simplicidade fosse uma espécie de elegância forçada advinda de uma disciplina autoimposta; sempre uniformizado.
Na semana passada, uma camisa teve a barra desfeita na máquina de lavar; mesmo no ciclo delicado, uma camisa de cinco anos. Levei-a à costureira para que a barra fosse refeita. Ela me lembrou que eu ainda tinha outra camisa lá para retirar. Os botões; eu pedira que os botões brancos leitosos da camisa vichy, em preto e branco, fossem trocados por botões pretos, assim eu teria uma camisa nova. Quarenta e sete reais pelos dois consertos. E considerando que gosto de qualidade, não compraria uma camisa sequer por quarenta e sete, imagine só duas.
É uma lógica que aplico aos demais departamentos.
Ainda na semana passada, troquei o cabo de uma frigideira que está comigo há anos. Doze reais. E eu tinha os parafusos em casa, eu mesmo troquei. Uma frigideira nova, e boa, considerando que eu gosto e preciso cozinhar? Quase trezentos reais.
Não tenho muitos livros em casa. Pasmem! Apenas os que são edições especiais ou os que comprei em viagem, objetos que carregam geografia e memória física. Mesmo aqueles que li e gosto bastante, mas não pretendo reler, passo adiante. Coloco nos correios, endereçados a amigos, com uma dedicatória. É um presente, desova, esvaziamento de espaço que me enche de alegria. Pedacinhos de mim habitando as casas dos que amo numa forma sutil e insistente de permanência.
Em 2013, comprei um box comemorativo lindo de Jane Austen numa viagem à Inglaterra. Capa dura, fitilho marcando as páginas, ilustrações, cheiro de papel caro, aquela espécie de objeto que você compra menos pelo conteúdo e mais pelo ritual de possuí-lo. Ano passado, cinco amigos receberam, cada um, um dos romances de Austen. Caprichei no embrulho: papel kraft bem rente ao livro, dobradura impecável ensaiada por horas, vendo tutoriais japoneses de embalagem de presentes no YouTube, eles são geniais; fita verde-esmeralda de cetim, um nó perfeito. Lindo, me senti uma bichona dona de floricultura e fiquei feliz com o sentimento; pimpão, alegre em não ter mais aqueles livros. Já os li. Se fechar os olhos, conheço cada vírgula daquelas edições. Não os releria tão cedo. Não quero objetos lindos parados pegando poeira em casa. Sou desapegado e sou alérgico; é sempre bom unir o útil ao agradável.
Uso o mesmo perfume, ou melhor, as mesmas notas de perfume, há anos. O mesmo corte de cabelo. Sou visualmente previsível, um personagem da Turma da Mônica, uma figura que se repete sem surpresas no quadro. Mas posso mudar qualquer dia, porque outra coisa que não tenho são certezas, e também não gosto de tê-las. Não tenho razão, e também não gosto de tê-la. Esses dias vi numa tirinha na newsletter do Poorly Drawn Comics, aquele humor seco, quase um suspiro desenhado, um personagem gabando-se de sempre ter razão. Que ideia tola. Não ter razão é a melhor coisa que alguém pode ter; é não tendo que, de repente, se passa a ter.
Em maio, decidi que me mudarei para São Paulo definitivamente ainda em 2025. Continuo fazendo entrevistas de trabalho, enviando currículos, como quem joga cartas num rio e espera que alguma chegue a algum lugar. A primeira coisa que me veio à mente quando a decisão foi tomada não foi o emprego, o bairro, a luz artificial da cidade, foi a possibilidade de me livrar dos móveis e objetos que já não me diziam nada. Vendidos dois mil reais em cacarecos no Enjoei, comprei uma obra de arte do exato mesmo valor. Agora ela repousa embrulhada em papel bolha na minha sala vazia, e até eu desembrulha-la, eu não a tenho; e a sala está vazia, ora, porque, não indo muito com a cara do sofá, coloquei-o sozinho no elevador e doei ao porteiro, que o aceitou de bom grado. A coluna vai bem, obrigado. Não pareço, mas sou forte. Vou à musculação para envelhecer bem e para poder, com minhas próprias mãos, descartar as coisas que não quero.
Um adendo necessário: não vou com a cara da Marie Kondo. Acho a moça uma bela de uma jacu. Meu desapego não tem a ver com minimalismo, não, não. Um homem que contém multidões, como é o meu caso, jamais será minimalista. Amo antiquários. Amo museus. Amo gente velha. Uma das minhas melhores amigas tem 76 anos, e a casa dela parece um antiquário, e eu me sinto perfeitamente à vontade entre os objetos que ela acumulou como testemunhas mudas de uma vida inteira.
E falando neles, não é que eu não os tenha esses objetos de afeto. Tenho, sim, e para encerrar o devaneio, fiz uma lista das coisas que guardo, coisas que são coisas mesmo, que resistem ao tempo e às minhas próprias contradições: um isqueiro com o rosto do Papa Francisco, ganhado em 2015 do meu amigo Igor (não estou falando de mim na terceira pessoa); uma caneca comprada em Paraty no ano passado, que mesmo quebrada na viagem, remendei com kintsugi caseiro. Nela, bebo café enquanto vos escrevo; uma bandeja de prata alemã, em formato de concha, que guarda os objetos que vivem nos meus bolsos e precisam de um lugar rápido; caixinhas de fósforo trazidas da Suíça em 2023, cada uma com um hotel ou restaurante diferentes estampados; meu relógio Casio dourado, já desbotado, que virou uma extensão do meu pulso e me acompanha há dezenove anos; um par de castiçais em madeira, estilo mid-century, que foram do meu avô e, segundo reza a lenda, foram comprados numa viagem à Finlândia nos anos 70. Meus primos não sabem que eu os tenho. E jamais saberão, mas eu os tenho, e faço questão de tê-los. O que é meu só passa a não sê-lo quando eu quero.
Se a newsletter de hoje fosse só elucubração, seria fácil. Mas não é. Então aqui vão algumas sugestões de leitura que têm tudo a ver comigo hoje. E que são tarefas importantes para se ter.
Song of Myself – Walt Whitman. Editora: Diversas (poema integrante de Leaves of Grass). No Brasil, pode ser encontrado em edições como a da Martin Claret (tradução de Folhas das Folhas da Relva). Valor aproximado: R$ 30–R$ 60 (dependendo da edição).
O Burguês – Franco Moretti. Editora (no Brasil): Boitempo. Valor aproximado: R$ 60–R$ 90.
História e consciência de classe – György Lukács. Editora (no Brasil): Martins Fontes (ou Boitempo, em outras edições). Valor aproximado: R$ 80–R$ 120.
A vegetariana – Han Kang. Editora (no Brasil): Todavia. Valor aproximado: R$ 50–R$ 80.
O colibri – Sandro Veronesi. Editora (no Brasil): Autêntica Contemporânea. Valor aproximado: R$ 70–R$ 100.
Fundamentos da cozinha italiana clássica – Marcela Hazan. Editora: WMF Martins Fontes. Valor aproximado: R$130.
Tocou a mim Razão e Sensibilidade, dessa linda coleção que se espalhou. Confesso que ainda não abri e jamais saberei cada vírgula desse romance. Segue aqui na prateleira. Uma que eu fiz recentemente de tábuas que no passado foram assoalho da loja do meu bisavô Tote. Eu gosto de coisas. De ter coisas e fazer coisas e reutilizar algumas coisas pra que elas virem outras coisas. Seu texto de hoje me incentivou a fazer uma lista mental do que realmente permaneceria, caso me desse na sapituca de começar do zero. Me lembrou também que em 2017 eu deixei uma mala de coisas no sótão de um amigo em Florença. Que continua lá.
Abri o substack e nenhuma newsletter estava prendendo a minha leitura, até chegar aqui. Gostei muito!