Se eu pudesse escrever como alguém jamais escreveu, Joan Didion seria a minha escolha. A escritora que reescreveu a contracultura californiana enquanto reinventava o jornalismo. Figura frágil na velhice, foi na juventude o que hoje chamaríamos de cult girl — antes que a internet reduzisse tudo a it-girls. Aos 80 anos, tornou-se rosto da Céline sob Phoebe Philo, marca que, em suas mãos, vestiu mentes antes de corpos.
Joan Didion foi a personificação corpórea de forma e conteúdo; sua vida e sua escrita se fundiram a ponto de seu texto se tornar indissociável de sua figura. É importante frisar que O Ano do Pensamento Mágico e Noites Azuis não são autobiográficos na direção dos textos de Annie Ernaux, Didier Eribon ou Édouard Louis, porque não são textos ficcionais; são ensaios em fluxo de consciência que tentam recuperar, em uma cronologia esparsa, os acontecimentos que antecederam e sucederam as mortes de seu marido, John Gregory Dunne, e de sua filha Quintana Roo Dunne, respectivamente.
Desses dois, O Ano do Pensamento Mágico (publicado no Brasil pela Editora Nova Fronteira) seja talvez o meu favorito, não por ser o mais doloroso, por ser o mais visceral. Nele, Didion captura o luto como um estado de desorientação física, a mente se recusa a aceitar a ausência, e os hábitos do amor persistem como atos falhos da rotina. Às vezes, penso que comparar esse luto ao fim de um relacionamento soa exagerado, mas Didion me convence do contrário. Em uma das passagens mais cortantes do livro, ela descreve o instante após a morte súbita do marido, John Dunne: seu primeiro impulso foi contar a ele sobre o ocorrido.
Quantas vezes, após um término, pegamos o telefone para enviar um meme ao ex-amor antes de lembrar, com um baque no peito, que aquele gesto perdeu seu destinatário. Ou viramos no sofá, prontos para dividir uma piada boba da TV, e encontramos apenas o vazio do lugar onde ele deveria estar. A pessoa se foi, mas o corpo teima em agir como se ela ainda existisse, como se os hábitos do amor pudessem por pura força de rotina, ressuscitar o que já era ausência.
Eu nem sempre achava que ele estava certo, nem ele sempre achava que eu estava certa, mas cada um de nós era a pessoa em quem o outro confiava. (O ano do pensamento mágico).
São as contradições do luto que Joan Didion esmiúça em O Ano do Pensamento Mágico; principalmente o luto como um estado de duplo pensamento. De um lado, a razão sabe que a morte é irrevogável; do outro, a mente insiste em armazenar detalhes como se o morto pudesse, a qualquer momento, voltar para ouvi-los. Didion chama isso de pensamento mágico, uma crença inconsciente de que nossos rituais privados podem alterar a realidade e neste tipo de pensamento, sou crente no melhor sentido possível da palavra. Não importa se perdemos alguém para a morte ou para o desamor; o que dói é ter de desaprender, dia após dia, a existência de quem um dia nos fez.
California dreaming
Joan Didion é de fato uma das escritoras e jornalistas mais influentes do século XX, conhecida por seu estilo límpido, preciso e profundamente introspectivo. Seu trabalho em Slouching Towards Bethlehem (1967), traduzido em português para Rastejando até Belém, é frequentemente celebrado como um marco do New Journalism, misturando reportagem com uma prosa literária afiada e uma sensibilidade única para capturar o caos e a fragmentação da cultura americana, especialmente na década de 1960. Em Slouching Towards Bethlehem, Joan Didion não apenas relata, ela desmonta e remonta a América diante dos nossos olhos. Seu jornalismo é uma dissecação lírica do caos, uma forma de olhar para o mundo e atravessá-lo como um fantasma.
O futuro sempre parece atraente na terra de ouro, porque ninguém se lembra do passado. Este é o lugar onde o vento quente sopra e os velhos hábitos não parecem relevantes, onde a taxa de divórcio é o dobro da média nacional e onde uma a cada 38 pessoas mora num trailer. (Rastejando até Belém).
Não consigo evitar a fantasia perversa de querer escrever como ela escreveu; não por emulação, não por homenagem; por um desejo canibal de engolir sua voz inteira, de arrancar-lhe o olho que tudo vê e colocá-lo no lugar do meu. É um pensamento absurdo, mas quem já se perdeu em suas frases afiadas, em sua maneira de transformar o trivial em profecia, entende o impulso. Não se trata de admirá-la; trata-se de querer ser ela, ainda que por uma linha. Didion não descreve; ela possui o que narra, e há uma parte de mim que deseja possuí-la de volta, mesmo sabendo que o que faz seu texto tão único é justamente o fato de ser inimitável, afinal, borogodó não se copia.
Notes to John
Comprei o livro póstumo Notes to John em fevereiro, e só chegou agora em junho. Após ler com mais profundidade sobre o que compõe esses ensaios, senti um arrependimento latejante e a consciência pesada. Joan Didion compartilhou sua intimidade nos dois romances que cito no início do meu texto, O Ano do Pensamento Mágico (2005) e Noites Azuis (2011), mas sempre sob seu controle narrativo. Considerando a mulher que foi, acredito que ela não teria problemas em expor fragmentos íntimos de sua vida à sua própria escolha. E é aí que reside o problema crucial de Notes to John.
Publicado postumamente pela editora Knopf, o livro consiste em anotações que Joan escrevia após sessões de terapia, destinadas ao marido, John Gregory Dunne, para que ambos pudessem lidar com questões como o alcoolismo da filha, Quintana Roo, a dinâmica conjugal e traumas de infância não resolvidos. São revelações tão íntimas que mal consigo imaginar quantas sessões foram necessárias para que alguém tão corajosa em sua vulnerabilidade, como Didion sempre foi, conseguisse externá-las. Li Notes to John com um nó na garganta e ciente de que estava violando algo. Não o terminei e nem pretendo, mas o guardo como um totem de alerta.
Na segunda-feira pensei em escrever uma carta tão pessoal quanto as páginas do diário de Didion, um pedido desesperado, um ato de preservação. Suplicaria ali que meus cadernos, as anotações esquecidas no telefone e as cartas de amor não enviadas jamais sejam publicadas após minha morte, caso algum dia eu me torne importante o suficiente para que especulem sobre minha vida, para que vasculhem meus restos como se fossem relíquias. Como Didion, não me oponho à exposição, mas insisto no controle; só compartilho o que escolho compartilhar, e mesmo assim peço que lembrem: o que está no papel é sempre ficção. Uma versão. Um arranjo.
O que há de mais brutal em mim, o que é mais cru, mais verdadeiro, o que paradoxalmente mais amo, não estará em nenhum arquivo, em nenhuma coleção de manuscritos. Viverá apenas na memória daqueles que me amaram, e quando esses também se forem, desaparecerá com eles. Sem cerimônia, sem legado. Apenas silêncio.
(Nota: Não há tradução brasileira de Notes to John — e torço para que nunca haja.)
The center will not hold
The Center Will Not Hold é, ao meu ver, uma obra-prima do gênero documental, dirigido por Griffin Dunne, sobrinho de Joan Didion. Lançado em 2017, o filme foi produzido enquanto a escritora e jornalista ainda estava viva, oferecendo um raro e íntimo retrato de sua vida, carreira e processo criativo. Disponível na Netflix, o documentário mescla imagens de arquivo, entrevistas pessoais e trechos de suas obras mais emblemáticas, como The Year of Magical Thinking e Slouching Towards Bethlehem, para explorar temas como luto, identidade e a fragilidade da existência humana.
A narrativa do filme é construída em torno da prosa precisa, melancólica e profundamente observadora de Didion, enquanto Dunne tece uma reflexão sobre sua influência no jornalismo literário e na cultura americana. Além de celebrar seu legado, The Center Will Not Hold funciona como um testemunho da desintegração de certos ideais sociais, tema recorrente na obra de Didion. A disponibilidade do documentário na Netflix garante que novas gerações possam descobrir uma das vozes mais lúcidas e necessárias do século XX e XXI.
Uma nota pessoal: acredito no amor segundo Joan Didion e John Dunne; dois escritores à mesa da cozinha, cada um mergulhado em seu próprio universo, cada um único na forma de traduzir o mundo em palavras. Mentes criativas que moldaram o mesmo léxico de maneiras distintas de 1964 a 2003; ela, precisa como um bisturi; ele, expansivo como uma paisagem. Em 1972, depois de episódios de cegueira parcial, veio o diagnóstico de esclerose múltipla. A doença ficou no papel, não na vida; Didion permaneceu em remissão, e assim seguiram.
Quero que o meu parceiro escreva, saia pelo mundo com a sua Leica M11 e fotografe o que há de mais belo no asfalto, se expresse em qualquer arte que o incendeie, mesmo que apenas para nós dois, ou amigos próximos. Enquanto isso, eu escreverei sobre a vida que vejo, a que desejo, a que me escapa entre os dedos e juntos transformaremos nossas palavras e imagens num só mapa em línguas diferentes.
Terminei esse texto querendo comprar (e ler) todos os livros dela - menos o póstumo, claro! Obrigado por compartilhar tanto!